Imagem morta de uma coisa viva
A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro.
Renato Tardivo – Revista Cult, novembro 2014
Neste ano celebra-se o centenário da publicação de um dos textos mais importantes escritos por Sigmund Freud, o criador da psicanálise.
Trata-se de “Introdução ao Narcisismo”, originalmente publicado em 1914; para muitos psicanalistas, o texto mais difícil de Freud.
De fato, suas proposições foram cruciais para o desenvolvimento da teoria psicanalítica e ainda hoje nos ajudam a pensar o contexto em que vivemos.
Como sabemos, o termo narcisismo provém da mitologia grega.
Narciso só teria vida longa se jamais olhasse para a própria imagem, tão belo ele era.
Ocorre que, ao se ver refletido nas águas límpidas de uma fonte, ele se apaixona.
Em busca desse amor impossível, Narciso funde-se consigo mesmo e afoga-se na própria imagem.
(...)
Recentemente, fotografias que se tornaram uma febre nas redes sociais trazem elementos para pensarmos a hipervalorização da própria imagem: as selfies (substantivo originado de self, “eu” em inglês).
Nesses retratos, em que a pessoa se autofotografa, o investimento na própria imagem chega a ser didático: o que importa é “sair bem na foto”. Se o cenário for um ponto turístico cobiçado, um restaurante sofisticado, ou um belo dia de sol, tanto melhor.
Para encaminhar a discussão, não nos esqueçamos de que as selfies são fotografias.
Roland Barthes escreveu em “A câmara clara” (1980) que a fotografia provoca um sentimento doloroso e enigmático justamente porque revela o que já não é: “imagem viva de uma coisa morta”, um “isso foi”.
O instante fugidio, eternizado no retrato enquanto algo que já não é, pode provocar no espectador as mais diversas reações.
Contudo, talvez se passe o oposto com a selfie: imagem morta de uma coisa viva. Explico.
A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro. Mas sendo a selfie um retrato voltado à própria imagem e, portanto, fechado em si mesmo, ela não convoca o outro: ela busca se autoafirmar.
Não importa quem irá curti-la nas redes sociais, senão quantos irão curti-la, e, dessa perspectiva, não há pulsação, não há abertura à alteridade.
Em vez disso, tal qual Narciso, essas imagens tendem a sufocar em si mesmas, configurando-se como imagens mortas.
Mas por que imagem morta de uma coisa viva? Voltemos a Barthes.
Para o autor, a foto é “imagem viva de uma coisa morta” porque, como vimos, há no retrato algo que já passou: um “isso foi”.
No caso das selfies, por outro lado, não podemos falar em algo morto, algo que já viveu, pelo simples fato de que a coisa fotografada, narcisicamente regredida, sequer pôde viver a própria vida.
Não se trata de um “isso foi”; trata-se de um isso (ainda) não é, o que se potencializa pela instantaneidade com que as selfies são postadas.
Invertendo a máxima do linguista francês, as selfies são imagens mortas; a coisa fotografada nelas, não.
Isso não quer dizer que todos os que façam selfies sofram de narcisismo patológico.
Antes, revela um sintoma da sociedade contemporânea, cada vez menos interessada nas relações interpessoais à medida que investe na profusão de imagens mortas, no refúgio do artifício.
Há exceções, contudo.
Por exemplo, há selfies que podem propor uma crítica a seu próprio mecanismo e há aquelas cujo autor tenciona revelar a sua humanidade no que ela pode conter, inclusive, de traços narcísicos.
Mas, infelizmente, essa não parece ser a tendência.
Em todo caso, é bom não esquecer: vai depender sempre de quem olha – de um lado e do outro.
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