quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

DRUMMOND - Passagem do Ano

Da página poesia.net




PASSAGEM DO ANO
Carlos Drummond de Andrade


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o
calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória,
 doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o
 clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do
 acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos
 séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras
 espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão 
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar. 
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
***

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

MIA COUTO - (Escre) ver-me

Arte: Will Barnet

(ESCRE) VER-ME
Mia Couto



nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me os olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

*            *            *

In: 'Raiz de orvalho e outros poemas', 1999

domingo, 28 de dezembro de 2014

La musica celeste

La luminosa musica barocca di Domenico Zipoli , compositore italiano ,(Prato- 1688 - Cordoba - 1726)
Sacris solemnis -Ensemble Elyma - Coro de Ninos Cantores de Cordoba

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O Imperativo da Felicidade


O Imperativo da Felicidade
Jean Alessandro Bertollo - publicado em "Obvious - Literatura"

"Seja feliz, que sua felicidade seja uma rotina diária, não demonstre tristeza, não publique coisas tristes nas redes, só mostre seu melhor lado, sua melhor imagem" 

Essas são coisas que estão sub-ditas, e que imperceptivelmente obedecemos, ou tentamos perseguir diariamente.
  

Massificação. É muito mais fácil manipular indivíduos no meio de uma grande massa, há muito menos espaço para o racional, para o lógico,e como diria Freud, muito mais afloração das pulsões primitivas.
Em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, aparece uma sociedade onde não há espaço para o singular, onde o lema é "cada um é de todos", qualquer desvio de conduta, ou inquietação é sanado com o "soma" uma droga sem efeitos colaterais distribuída para a população. 
Promiscuidade sexual é regra! Satisfazer imediatamente qualquer apetite sexual, pois uma pulsão inibida, faz com que apareça inquietação, busca, questão, arte, cultura, sentimentos. E isso desestabiliza a perfeição engenhosa da sociedade futurística.

Qualquer sinal de apego ou amor é sanado com tratamentos onde são injetadas altas doses de adrenalina e outros químicos que imitam o estado "apaixonado". 
As doenças foram mapeadas, assim como todos os genes humanos e possíveis erros, de modo que a doença não existe mais. 
Os seres humanos são condicionados até os 17 anos a aceitar sua condição numa determinada casta, se vem como privilegiado em estar nela, além de vários outros condicionamentos como não sentir medo da morte, se sentir altamente realizado e feliz diante de uma rotina diária e repetitiva. 

O próprio autor diz, alguns anos mais tarde que se espanta com o modo que suas previsões parecem cada vez estarem mais perto. 
Basta uma criança causar um pouco de agitação, já recebe sua dose somática de Ritalina. Basta que alguém se sinta triste por mais de um dia, logo é tachado depressivo. 
Dificilmente há alguém que não se enquadre em algum distúrbio ou doença mental descrita nos manuais de diagnóstico psiquiátricos CID e DSM.
É quase impossível escapar do seu enquadramento minucioso. Isso sem entrar na discussão sobre um padrão americano que determina o que é normal e o que não é, sendo as sociedades e culturas diferentes. 
Onde está espaço para cada um ser único?

A indústria da cultura e do entretenimento martela nossas cabeças com coisas que se dizem arte, e que muita gente aceita, e ainda por cima briga para defender. 
O consumo é regra, e o sujeito que não consome, sequer pode ser chamado de indivíduo. 

Em meio a tudo isso é nos ordenado que sejamos felizes, ou que pelo menos fiquemos fingindo e nos vangloriando que somos realmente. Pois não há tempo para tristeza, para luto. É preciso trabalhar, correr, trabalhar pra ter um carro melhor, depois um melhor, depois outro. E se algo esta errado, tome um antidepressivo, um relaxante, um estimulante... Estamos indo a algum lugar com tudo isso... que lugar é esse?

Interessante a ideia de Contardo Calligaris sobre a felicidade: não quero ser feliz, por que ser feliz é um estado monótono onde tudo vai bem, onde tudo fica estagnado. Quero ter uma vida interessante, pois os momentos de sofrimento são necessários também.

A que ponto chegamos que não temos nem o direito de sofrer em paz? (com o perdão da ironia). 



No livro de Huxley há um personagem que se sente deslocado, ele resolve ir até o ultimo lugar onde ainda ha pessoas nascendo, vivendo em famílias, onde é permitido adoecer, amar, sofrer...lá conhece um selvagem, que trás para a civilização, e se torna uma espécie de ícone que desperta curiosidade em todos.

O selvagem se espanta com esse mundo bizarro, pois pra ele é normal sofrer, chorar, adoecer, ser livre, poder sentir se único, poder pensar, amar, viver com intensidade... sejamos um pouco mais "selvagens" então!


*            *            *

sábado, 20 de dezembro de 2014

HISTÓRIAS DE UM NATAL DE SEMPRE

Da página "Diálogos na Caverna"



Histórias de um Natal de sempre
Lucia Helena Galvão Maya 

Algumas experiências, aparentemente simples e banais, nos marcam profundamente.
Um dia desses, por exemplo, o cachorrinho da minha casa, aquele mesmo que é quase sempre inconveniente e transportador de pulgas, inventou de adoecer, e inventou sério: quase que morre.
Isso gerou uma comoção total na casa: ninguém tinha reparado que seria tão difícil viver sem aquela criaturinha que alegrava nossa chegada, com sua euforia, e perturbava nossas refeições, na esperança de participar delas.

A partir daí, comecei a viver um ciclo de observações bem interessante: parei para prestar atenção em pequenas coisas belas que nunca reparo, mas que estão lá, adornando a minha vida de uma forma que percebi como indispensável.
Já houve filósofos (estes que reparam em tudo) que disseram que a consciência nasce do contraste, ou seja, que notamos o valor das coisas quando as perdemos, ou corremos o risco de perder.

Há um sabiá que sempre canta pelas redondezas da minha janela; chega a dobrar o trinado, exibicionista, num fôlego de fazer inveja... como nunca havia percebido a diferença que esse passarinho faz, nas minhas manhãs?

Ao chegar ao trabalho, nessa época do ano (como sempre, em todos os anos), tem aquela senhora que traz todas as guirlandas natalinas da casa dela e pendura em todas as portas... e fica por ali, na esperança de alguém que passe e elogie... vai que esse alguém também veja a foto da netinha, em cima da mesa, e comente algo! Dá-lhe histórias sobre as últimas gracinhas da menina...sempre a mesma rotina!

Mas o cãozinho que quase morre me deu a preciosa lição de que o “sempre” pode acabar a qualquer momento, assim, sem mandar aviso... e deixar um vazio dolorido no coração da gente.

Passando pela panificadora no caminho de casa (sempre tem que passar!),o balconista sorri e dispara a pergunta: “Pão branquinho ou torradinho, moça?”.
Olho para a gôndola de pão e vejo que só tem pão branquinho lá dentro...e então respondo, com a satisfação de pedir algo que ele pode me dar: “Vê para mim seis bem branquinhos, moço!” Sorrisos.
As nuvens lá fora estão pesadas, talvez a condução atrase e faça chuva de vento, que molhe todo o abrigo de ônibus... “O futuro a Deus pertence”, dizia minha vó...mas o presente, a alegria singela do presente pertence agora ao moço da padaria, cheio de satisfação ao me estender o pacotinho de papel pardo...

Vez por outra, no banco da pracinha, perto do portão, tem casal de namorado abraçadinho e meio bobo (como sempre são, os namorados!), olhando a lua, ainda que minguante. Mas eles nem vêem o muito de sombra que a lua tem, nesse dia, e aceitam de bom grado o fiapo de luz que ela tem para oferecer, como um presente...

Na caixa de correspondência, a propaganda comercial diz: “O Natal está chegando!” Isso me causa um impacto de estranheza: como assim? para onde havia ido o Natal? Com certeza, para lugar nenhum: esteve aí o tempo todo.
Isso me faz recordar a história da mãe, que sabe que seu garoto esteve a manhã inteira na rua, brincando e jogando futebol, mas que marca hora para sentir falta dele. E aí, chega na janela e grita a pleno pulmão para o menino vir para dentro, que a comida está no prato. E ele entra, com o corpo sujo de doer, mas a alma limpa e pura, transbordando pelos olhos em alegria.

Parecido com isso é o que acontece conosco e com o Natal, com o seu Menino tão especial: marcamos data (dezembro, 25), para chamá-lo para dentro de casa; e lá vem Ele, luminoso, sentar à mesa ao nosso lado, sorrir, lambuzar o rosto de confeitos e mostrar suas figurinhas para trocar as repetidas conosco. E dizemos: “Eu tenho a do sabiá, a dos namorados e a lua e a do cachorrinho...você tem qual?”
Menino sabido: sempre tem figurinha nova para trocar com a gente.


Então, combinamos assim: o Natal está chegando; vamos arrumar a casa e chamar o Menino para dentro. Esse que sempre corre pelas ruas, alegre e vivo, vendo beleza e colocando beleza em todas as coisas.
Mas não se esqueça de desconfiar da palavra “sempre”.
Se for verdade a lição que aprendi com o meu cachorrinho, de tanto estarmos desatentos, ausentes, superficiais, confiados no “sempre”, um dia (pesadelo!), corremos o risco de abrir a janela... e o sempre virou nunca mais. Fique atento ao sempre... alimente o sempre!

Já houve desses filósofos faladores do passado (e do presente!) que disseram que o sempre, bem alimentado, corre o risco de virar...eternidade.

Feliz Natal para você... sempre!


*            *            *

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

MIA COUTO - em 'Estórias abensonhadas'

Tela de Leonid Afremov

O Cego do Estrelinho
Mia Couto


O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.

E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.

O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:

- Tenho que viver já, senão esqueço-me.

Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:

- Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!

A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:

- Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!

Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.

- Na noite aflige não haver luz?

- Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.

Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez o céu para justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios, subterfugindo:

- E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?

Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia. Só assim adormecia. A razão da concha é a timidez da amêijoa? Na manhã seguinte, o cego lhe confessava: se você morrer, tenho que morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o caminho para o céu?

Foi no mês de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pôr na guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou: que o moço inatingia a idade: E que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe tranquilizou:

- Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu lugar.

O cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já não estava lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água ida nem vinda, Estrelinho escutou o amigo se afastar, engolido, espongínquo, inevisível. Pela primeira vez, Estrelinho se sentiu invalidado.

- Agora, só agora, sou cego que não vê.

No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presença de seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende mano Gigito?

Mas a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse sim, repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus olhos no centro de manchas e ínvias lácteas. Aquela era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando, o cego captava o escuro em vagas, despedaços. O mundo lhe magoava a desemparelhada mão. A solidão lhe doía como torcicolo em pescoço de girafa. E lembrou palavras do seu guia:

- Sozinha e triste é a remela em olho de cego.

Com medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais interpretavam ser olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo caminho. Tropeçando, empecilhando, acabou caído numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram à procura da mão de Gigitinho.

Então ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera Gigitinho: a ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o corpo não ocupasse lugar nenhum.

De aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar desgraças. Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde tombara. Como diria Gigito: era ali que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem força ele colectou para se afastar.

Ficou naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que tombam nas despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe despertou os ombros.

- Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.

Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele careceu que ela o amparasse já não apenas de mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela puxava o cego de encontro a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já não procurava só outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.

Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante, regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava eternidades. Sua cabeça andorinhava e ele guiava o coração como voo de morcego: por eco da paixão. Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E adormeceu enroscado nela, seu corpo imitando dedos solvidos em outra mão.

A meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobreassaltada. Tinha visto a garça branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu peito. Mas, fingiu sossego e serenou a moça. Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.

De manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve um militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como devem as feridas da guerra. Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele já sabendo daquela perca. A moça, essa, deixou de falar, órfã de seu irmão. A partir dessa morte ela só tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes da minha actual vida.

E quando já havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:

- Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?

E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:

- Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!


*            *            *



In  "Estórias Abensonhadas"


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O Pai Nosso (traduzido do aramaico)

Recebido da amiga Tel Mont, em 10 de dezembro 2014



O PAI NOSSO 
(traduzido do aramaico - língua que, supostamente, teria sido falada por Jesus)

Pai-Mãe, Respiração da Vida, Fonte do Som, Ação sem Palavras, Criador do Cosmos. 
Faça Vossa luz brilhar entre nós, fora de nós e que possamos nos tornar úteis.
Ajude-nos a seguir nossos caminhos, respirando apenas o sentimento que emana de Vós.

Una nosso "eu posso" com o Vosso, para que nós possamos caminhar como reis e rainhas com todas as criaturas.
Que o Vosso e o nosso desejo sejam um só, em toda luz assim como em todas as formas, em toda existência individual assim como em todas as comunidades.
Faça-nos sentir a alma da Terra dentro de nós, pois assim sentiremos a Sabedoria que existe em tudo.
Não permita que a superficialidade e a aparência das coisas do mundo possa iludir-nos e nos liberte de tudo aquilo que impede nosso conhecimento.
Não nos deixe sermos tomados pelo esquecimento de que Vós sois o poder e a força viva do mundo, a canção que se renova de tempos em tempos e a tudo embeleza.
Possa o Vosso amor ser o solo onde cresçam nossas ações.
Amém. 
*        *        *
Do livro "Prayers of the Cosmos", de Neil Douglas-Klotz)

domingo, 30 de novembro de 2014

OLAVO BILAC - Defesa


Defesa
Olavo Bilac

Cada alma é um mundo à parte em cada peito...
Nem se conhecem, no auge do transporte,
os jungidos do vínculo mais forte,
almas e corpos num casal perfeito:

Dormindo no calor do mesmo leito,
votando os corações à mesma sorte,
consigo levam à velhice e à morte
um recato de orgulho e de respeito...

Ficam, por toda a vida, as duas vidas
na mais profunda comunhão estranhas,
no mais completo amor desconhecidas.

E os dois seres, sentindo-se tão perto,
até num beijo, são duas montanhas
separadas por léguas de deserto.

*        *        *

LUCIANA SADDI - Lembranças

Arte: Loui Jover

Lembranças
Luciana Saddi (*) - 09/04/2014 

O Poeta e humanista romano, Sêneca, que viveu no primeiro século, dizia que o recurso que temos para diminuir os efeitos das perdas é guardar a lembrança das coisas perdidas e, por esse meio, não deixar desvanecer o proveito que tivemos. 
Vai-se a posse, fica para sempre a vantagem de ter possuído. 
Segundo ele o destino nos retira a coisa, mas deixa seu fruto. 
As reclamações e queixas sempre nos fazem perder a boa lembrança, ou seja, a vantagem de ter vivido algo bom.

Segundo Sêneca, a lembrança fixa a experiência, diminui o efeito da perda sobre nós. Mas a lembrança aumenta a dor da perda quando se torna lamento pelo objeto perdido, adverte ele.

O que são as lembranças? Truques para superar a finitude. 
O que se foi se faz presente e perdido ao mesmo tempo. 
Lembrança é uma estranha mistura do que perdemos com o que ganhamos ao viver.  Marca da passagem do tempo, do passado irreversível, da falta e testemunho da nossa existência.

Transformar a dor da perda em lembrança é uma arte. 
A escrita, a literatura e as artes podem ser entendidas como produto e expressão da luta contra o esquecimento e a morte,  transformam lembranças em experiência compartilhada para que não se percam no tempo como lágrimas na chuva. 

A recordação estende a corda da vida além dela mesma.

*            *            *

(*) Luciana Saddi atua como psicanalista em São Paulo e é mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. 
Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na Revista da Folha. 
Integra a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e é autora de artigos científicos em revistas especializadas de Psicanálise. 
Tem dois livros publicados como autora de textos de ficção: “O Amor Leva a um Liquidificador”, editora Casa do Psicólogo, e o romance “Perpétuo-Socorro”, editora Jaboticaba.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sobre Narcisismo

Trechos de um artigo da Revista Cult, novembro 2014 


Imagem morta de uma coisa viva

A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro.

Renato Tardivo – Revista Cult, novembro 2014


Neste ano celebra-se o centenário da publicação de um dos textos mais importantes escritos por Sigmund Freud, o criador da psicanálise. 
Trata-se de “Introdução ao Narcisismo”, originalmente publicado em 1914; para muitos psicanalistas, o texto mais difícil de Freud. 
De fato, suas proposições foram cruciais para o desenvolvimento da teoria psicanalítica e ainda hoje nos ajudam a pensar o contexto em que vivemos.

Como sabemos, o termo narcisismo provém da mitologia grega. 
Narciso só teria vida longa se jamais olhasse para a própria imagem, tão belo ele era. 
Ocorre que, ao se ver refletido nas águas límpidas de uma fonte, ele se apaixona. 
Em busca desse amor impossível, Narciso funde-se consigo mesmo e afoga-se na própria imagem.
(...)

Recentemente, fotografias que se tornaram uma febre nas redes sociais trazem elementos para pensarmos a hipervalorização da própria imagem: as selfies (substantivo originado de self, “eu” em inglês). 
Nesses retratos, em que a pessoa se autofotografa, o investimento na própria imagem chega a ser didático: o que importa é “sair bem na foto”. Se o cenário for um ponto turístico cobiçado, um restaurante sofisticado, ou um belo dia de sol, tanto melhor.

Para encaminhar a discussão, não nos esqueçamos de que as selfies são fotografias. 
Roland Barthes escreveu em “A câmara clara” (1980) que a fotografia provoca um sentimento doloroso e enigmático justamente porque revela o que já não é: “imagem viva de uma coisa morta”, um “isso foi”. 
O instante fugidio, eternizado no retrato enquanto algo que já não é, pode provocar no espectador as mais diversas reações. 
Contudo, talvez se passe o oposto com a selfie: imagem morta de uma coisa viva. Explico.

A expressão “imagem viva”, de Barthes, refere-se à pulsação contida na foto, à sua possibilidade de ferir o olhar e convocar o outro. Mas sendo a selfie um retrato voltado à própria imagem e, portanto, fechado em si mesmo, ela não convoca o outro: ela busca se autoafirmar. 
Não importa quem irá curti-la nas redes sociais, senão quantos irão curti-la, e, dessa perspectiva, não há pulsação, não há abertura à alteridade. 
Em vez disso, tal qual Narciso, essas imagens tendem a sufocar em si mesmas, configurando-se como imagens mortas.

Mas por que imagem morta de uma coisa viva? Voltemos a Barthes. 
Para o autor, a foto é “imagem viva de uma coisa morta” porque, como vimos, há no retrato algo que já passou: um “isso foi”. 

No caso das selfies, por outro lado, não podemos falar em algo morto, algo que já viveu, pelo simples fato de que a coisa fotografada, narcisicamente regredida, sequer pôde viver a própria vida. 
Não se trata de um “isso foi”; trata-se de um isso (ainda) não é, o que se potencializa pela instantaneidade com que as selfies são postadas.

Invertendo a máxima do linguista francês, as selfies são imagens mortas; a coisa fotografada nelas, não.
Isso não quer dizer que todos os que façam selfies sofram de narcisismo patológico. 
Antes, revela um sintoma da sociedade contemporânea, cada vez menos interessada nas relações interpessoais à medida que investe na profusão de imagens mortas, no refúgio do artifício. 
Há exceções, contudo.
Por exemplo, há selfies que podem propor uma crítica a seu próprio mecanismo e há aquelas cujo autor tenciona revelar a sua humanidade no que ela pode conter, inclusive, de traços narcísicos. 
Mas, infelizmente, essa não parece ser a tendência. 
Em todo caso, é bom não esquecer: vai depender sempre de quem olha – de um lado e do outro.


*            *            *

terça-feira, 18 de novembro de 2014

FLORBELA ESPANCA - ?


?
Florbela Espanca

Quem fez ao sapo o leito carmesim 
De rosas desfolhadas à noitinha? 
E quem vestiu de monja a andorinha, 
E perfumou as sombras do jardim? 

Quem cinzelou estrelas no jasmim? 
Quem deu esses cabelos de rainha 
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha 
Alma a sangrar? Quem me criou a mim? 

Quem fez os homens e deu vida aos lobos? 
Santa Teresa em místicos arroubos? 
Os monstros? E os profetas? E o luar? 

Quem nos deu asas para andar de rastros? 
Quem nos deu olhos para ver os astros 
— Sem nos dar braços para os alcançar?

*        *        *

In: " Charneca em flor", 1931 

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Drummond - Fala, amendoeira

Fala, amendoeira
Carlos Drummond de Andrade

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. 
Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. 
Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. 
Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. 
Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. 
Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. 
Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho.
E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

-  Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

-  E vais outoneando sozinha?

-  Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

-  Somos todos assim.

-  Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. 
Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

-  Não me entristeças.

-  Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. 
Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. 
O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. 
As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... 
Outoniza-te com dignidade, meu velho.

*            *            *

Crônica publicada, originalmente, no antigo jornal Correio da Manhã (1957)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

ANDRÉ J. GOMES - Um passarinho novo...


Um passarinho novo no céu das pequenas coisas
André J. Gomes - "Revista Bula", 13 de novembro 2014

E lá estavam todos eles. As formigas e os sapos, as cobras e os grilos, os ciscos e os pequenos universos que pulsam dentro das gotas d´água. Todas as criaturas pequenas que vivem debaixo das pedras e as borboletas e os pássaros, todos os pássaros trabalhando acima das árvores e brincando de andar no chão.

As rãs e os rios, as folhas pesadas de orvalho caindo dos galhos. Ficaram todos ali, à espera: um anjo simples, sem tempo nem jeito anunciara a chegada de passarinho novo ao céu das pequenas coisas.

Fez-se então no céu que é um imenso e eterno chão a maior expectativa de simplicidades. Todas as coisas e os seres desimportantes da vida estavam ali. As tartarugas caminhando no avesso dos mísseis, os insetos voando alheios aos aviões, os atrasos e os silêncios, as insignificâncias do tempo costurando suas esperanças em linhas invisíveis de quando.

O passarinho chegou ali em sua manhã quase tardinha, quase de noite. Olhou a todos com olhos de infância. Reencontrou o amigo Bernardo como na primeira vez que o reconhecera, quase árvore. Reviu os filhos João e Pedro de novo crianças, brincando de fazer nada na sombra com palavras de sol. Chegou agora e sempre.

Foi ser feliz de novo, transbordar as peneiras de água, afanar o vento e mostrar correndo aos irmãos, escrever a Gramática Expositiva do Céu. Vivo como a vida inventada por ele.

Porque no céu das pequenas coisas, morrer é só um despropósito como tantos mais, e o voo do passarinho não morre. Finda seu corpo físico, parte seu canto infinito. Ele foi adiante.

Foi-se tornar inútil e belo como sempre. Para sempre. Com os seus, vai viver de apanhar desperdícios em um quintal maior que o mundo. E o mundo, esse nosso cá aquém, fica para antes e depois. Fica para quando.

Para Manoel de Barros.


*            *            *

MANOEL DE BARROS - Brincadeiras

Que coisa... ontem, publiquei um texto de Mia Couto homenageando Manoel de Barros. 
Eu não poderia imaginar  que hoje o poeta das coisas simples voaria de volta pra casa...

Fica registrada também a marca da milésima postagem no blog, que eu desejara mais alegre...



A Infância - Brincadeiras
Manoel de Barros (1916-2014)

No quintal a gente gostava de brincar com as palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:
O céu tem três letras
O sol tem três letras
O inseto é maior.
O que parecia um despropósito
para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras e o sol só tem três
logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão que era estudado falou quê lógica quê nada
Isso é um sofisma. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n'água. Entendemos tudo.

Depois Cipriano falou:
Mais alto do que eu só Deus e os passarinhos.
A dúvida era saber se Deus também avoava
Ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia a desordem.

Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.

Outro dia a gente destampamos a cabeça do Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore árvore árvore
Nenhuma idéia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.

Isso era.


*            *            *

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

MIA COUTO - "Miudádivas, pensatempos"


“Miudádivas, pensatempos 
Mia Couto

(Para Manoel de Barros, meu ensinador de ignorâncias)

Estou sem texto, enriquecido de nada. Aqui na margem de uma floresta em Niassa, me desbicho sem vontades para humanidades. 
Entendo só de raízes, vésperas de flor. 
Me comungo de térmites, socorrido pela construção do chão. 
No último suspiro do poente é que podem existir todos sóis. Essa é a minha hora: me ilimito a morcego. Já não me pesam cidades, o telhado deixa de estar suspenso ao inverso em minhas asas. Me lanço nessa enseada de luz, vermelhos desocupados pelo dia. 

Nesse entardecer de tudo vou empobrecendo de palavras. 
Não tenho afilhamento com o papel, estou pronto para ascender a humidade, simples desenho de ausência. 
Na tenda onde me resguardo me chegam, soltas e dispares, desvisões, pensatempos, proesias. Assim, em miudádivas ao poeta:

A primavera cabe dentro do grilo.
Cigarras se alfabetizam de silêncios.
No liso da parede,
a osga se prepara para transparências,
Adquire a forma do nada.
Enquanto o ramo vai transitando para camaleão.

Na mafurreira,
sobem ninhos de arribação, ovos do arco-íris.
A aranha confunde madrugada com sótão,
artefactando materiais de orvalho.
Ela se mantimenta de esperas.
Minha tenda se engrandece a teia.

Uma mosca se inadverte na armadilha.
Igual o amor
que rouba mecanismos de viver.

Formigas transportam infinitamente a terra.
Estarão mudando eternamente de planeta?
Estarão engolindo o mundo?

Insectos sonham ser olhados pelo sol.
Mas só a chama da vela os vela.
Já o ovo é iluminado por dentro,
tocado pela luz do infinito.
O ovo repete o total inicio,
redundante gravidez do mundo.

Por isso, este surpreendido ovo
não tem competência para meu jantar.
Pena o estômago não entender poesias.


Nada se parece tanto: poente e amanhecer.
Defeitos na tela do firmamento?
Instantâneas aves,
pedras que se despoentam.
A noite acende o escuro.
Tudo semelha tudo
Só a coruja atrapalha a eternidade.


Está chovendo horas,
a água está a ganhar-me semelhanças.
Escuto ventos, derrames de céu.
Parecem-me luas e são lábios.
Lembranças da minha amada.
A tua boca me ilude, sou culpado de teu corpo.
Saudade: sou mais tu que tu.

Escuto, depois a enchente.
Longe, a água desobedece a paisagens.
O rio toma banho de troncos, 
raízes da água se soltam.
Sigo de catarata, luz encharcada.
E peço desculpa á margem:
desconhecia as unhas de minha transbordância.
Meu sonho está cega para razões.
Sei só escrever palavras que não há.

Depois, o sono me encaracola:
estou a ser pensado por pedras, me habilito a chão, o desfuturo.”

*            *            *

Do livro "Contos do nascer da terra"


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

TEL MONT - 'Tabacaria' ainda aberta...

Da página "A louca da biblioteca" - facebook


Imagem: Arte de Quint Bucholz.
Pervaga um sentimento de arrasamento total dentro de mim. 
Destroços boiam por sobre minhas águas, e eu me sinto medíocre, numa noite igualmente medíocre,
porque não me oferece as respostas que não faço, mas penso, e procuro. 
Instalou-se, sem minha permissão expressa, uma Tabacaria dentro aqui desde há dias. 
Já são outras manhãs, e ela não fechou ainda. 
Não há mais ninguém e ela continua aberta. 
Estou só, à espera... Do quê? De simples verdades, 
tão simples quanto essas flores silvestres que brotam delicadamente à beira da estrada 
e só o vento ao passar brinca com elas. 
Ninguém mais as percebe.
Clarice, Clarice, o que faço com o meu personagem? 
Não quero fantasmas camaradas. 
Quero que eles arrastem correntes e soltem labaredas pelos olhos 
e não sintam remorsos bobos por seus desejos de vingança. 
Quero-nos poderosos e indestrutíveis. 
E quando ninguém estiver vendo, 
que eles sentem a um canto e chorem melancolicamente
sob a luz do luar. 
E faz lua agora, uma lua imensa e prateada. Clariceana.
(Há lua aí também?)

Afastei uma telha no teto do meu quarto, que não tem forro, 
e um facho de luar desce. 
Fosse uma ponte, eu nem estaria mais aqui agora. 
Talvez já estivesse em casa outra vez... 
Meu coração está tão pequenino hoje, assim uma joaninha parada sobre uma folha, 
ou um desses besourinhos que surgem do nada, 
parece que brotam do ar para uma realidade exaustivamente cotidiana. 
E isso é um momento que sempre me deixa perplexa - "como se soubesse a verdade". 
Meu coração hoje está frágil como uma gota de orvalho pendurada num galho pequeno e solitário, 
num jardim pequeno e solitário e que também ninguém repara. 
Se essa gota ao menos caísse, 
para que se espatifasse em minúsculas transparências. 
A beleza efêmera de um instante que nunca será igual a outro instante. Isso é liberdade. 

(TEL MONT)

*            *            *

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

INCÓGNITA INSTIGANTE - sobre Clarice Lispector




Incógnita Instigante
Thaís Folgosi- "Obvious - Lounge"

Pelo direito de não se definir: como o conto "O ovo e a galinha" traduz sua autora, Clarice Lispector


Quem é Clarice Lispector? E quem vem primeiro? A Clarice mulher? A Clarice escritora? A estrangeira? A mãe? Ou, porque não uma faceta desconhecida do público? 
Este enigma que é uma das maiores autoras do Brasil (apesar de ter nascido na Ucrânia) defendeu o direito de não se definir ou nomear cada sentimento, objeto, ou qualquer outra coisa de que se trata. Esta carência de sentido encontrada em suas histórias fisga o leitor, que ao ler não compreende, e fica instigado.
Suas obras compreendem as pessoas de modo geral, sendo a escritora que melhor explorou o âmago de suas personagens, que ao viver devaneios e epifanias vivenciam momentos extremos de lucidez. Sem contar que as personagens de Clarice são humanas, isto é, são ambíguas, ao mesmo tempo são uma coisa e o seu oposto. Assim como qualquer indivíduo que é complexo, e não raso e maniqueísta.

Entre tantas histórias que causam estranheza e incômodo, nenhum conto melhor do que "O ovo e a galinha", que parece inassimilável, para ilustrar essa característica de não definir exatamente sobre aquilo que fala. 
A própria Clarice, durante a última entrevista de sua vida, concedida a TV Cultura, em 1977, disse gostar deste conto em especial, por ser um trabalho que continua a ser um mistério para ela.

A escritora inicia o conto divagando livremente sobre um ovo para finalmente adentrar na vida de sua narradora, num diálogo interior profundo e reflexivo.
Ao falar da superfície do ovo, pode-se perceber que o que se conhece de Clarice é mais seu exterior, na figura de escritora, do que seu interior. 
E mesmo das pessoas que estão ao nosso redor diariamente, se formos pensar sabemos pouco, de nós mesmos, e de nosso colega de trabalho também. E nos limitamos a ser apenas uma "casca" que pode esconder muitas facetas.

Assim como o mal que da galinha é desconhecido, pelo qual a narradora se lamenta, tantas vezes passamos por tal situação. 
Sofremos sem saber o porquê, mas desconfiados de que ele se encontra dentro de nós. 
Além disso, assim como a galinha, contradizemo-nos e constantemente nos remodelamos. E é com tantas indagações, banais e filosóficas, que vivemos.

Após um longo devaneio sobre o ovo que se direciona a uma epifania sobre o significado do amor. 
É então, após o momento de conscientização, que a narradora coloca em dúvida a própria clareza. Será que tal epifania de fato ocorreu? Será que sou mais lúcida a ponto de perceber que tudo não passa de um disfarce?

Quando Clarice escreve "Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando", a autora permite essa incógnita. Pois nem tudo tem uma explicação, por mais incabível que isto seja num mundo cartesiano que exige afirmativas a todo momento.
Mas lembremos que, por ser um mistério, tudo que foi dito não passa de especulação. 
A verdade é que nem todos os mistérios são desvendados.

O conto "O ovo e a galinha", tanto quanto sua autora, continuará nas mentes especulativas de cada leitor que, instigado, vai acreditar ter finalmente encontrado o real significado da história.
Essa eterna especulação é positiva, porque, ao se definir tudo, perde-se a essência e tudo aquilo que poderia ser, mas por ter sido definido, delimitado e enquadrado, já não se pode ser mais. 
As palavras e o pensamento nos afasta do objeto. 
A busca incessante por definirmos as coisas limita-nos.

Assim como sua escrita, Clarice também é um mistério. Pode-se constatar isso na última entrevista, de 1977. 
A sisudez presente nas respostas curtas, a seriedade presente no tempo que leva para responder às perguntas, a introspecção notada no silêncio quando nada tem a declarar, a rispidez que pode ser interpretada como uma falta de interesse, ou, como prefiro, o cansaço causado por uma doença que se descobriria depois daquela entrevista, fazem dela tímida e ousada, assim como sua obra.

*        *        *