terça-feira, 22 de julho de 2014

RUBEM ALVES - Sobre a morte e o morrer

Sobre a morte e o morrer
Rubem Alves

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de
um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: “Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver.” 
A vida é tão boa! Não quero ir embora…

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. 
Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: “Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?”. 
Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: “Não chore, que eu vou te abraçar…” 
Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: 
E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega… O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias… Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto…

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. 
Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. 
O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. “Minha filha, sei que minha hora está chegando… Mas, que pena! A vida é tão boa…

Mas tenho muito medo do morrer. 
O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. 
Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.
(...)

Aprendi com Albert Schweitzer que a “reverência pela vida” é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?
(...)
Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.
(...)
Dizem as escrituras sagradas: “Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer”. 
A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. 
A “reverência pela vida” exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir.

Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a “morienterapia”, o cuidado com os que estão morrendo. 
A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. 
Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs.



Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a “Pietà” de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.


*            *            *

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