terça-feira, 23 de novembro de 2010

MUDAMOS NÓS OU MUDARAM AS CRIANÇAS?


MUDAMOS NÓS OU MUDARAM AS CRIANÇAS?

(Nairzinha/ pesquisadora da Cultura da Brincadeira Brasileira)


Ser criança no terceiro milênio é fácil e prazeroso, ou um desafio aos nossos pequeninos?
O que acontece com eles quando a sociedade investe num amadurecimento precoce e exigente, impondo um modelo de pequeno adulto a ser seguido?
O que tem de diferente a criança do terceiro milênio? O acesso à internet, a velocidade das comunicações, o conhecimento precoce sobre temas como clonagem, violência, transplantes e seqüestros, balas perdidas, terrorismo, está mudando a natureza infantil?
Até que ponto o amigo virtual, a forma de brincar interagindo com a máquina, o vídeo game e sua ética de adquirir novas vidas todas as vezes que vence ou mata o adversário, o hábito de comprar brinquedos e não construí-los e usar muito mais os dedos que as pernas, a brincadeira sedentária e solitária, a presença da realidade substituindo a fantasia, roupas de adulto, salto alto, batom e o namoro precoce, sobretudo a sobrecarga de responsabilidade, horários e compromissos está mudando a identidade infantil?

Mudaram as crianças ou mudamos nós?
No contato com milhares de crianças, que a minha experiência profissional me permite, percebo que elas não mudaram. Têm um olhar encantador de manhãs douradas, têm mãos inquietas como as do criador, têm sorrisos abertos e doces como a brisa da tarde. Ganham tempo olhando formigas, sentindo a terra e provando o orvalho sempre que incentivadas.

Mudamos nós, que deixamos de falar de estrelas, sacis e cucas. Que esquecemos de olhar o céu, de ver o manto estrelado da noite, de pensar nas cores dos peixinhos do mar, nos brilhos dos raios do sol, nas cores do arco íris. De cantar e contar histórias.
Ficamos estáticos, deixamos de voar nas asas das borboletas e dos pirilampos. Trocamos a leveza dos sonhos e da fantasia pelo peso de uma realidade que cai sobre nossos ombros e nos paralisa de tanto cansaço. A nossa verdade ficou dura e a nossa realidade cinzenta.

Mudamos nós que apressamos a vida, que contabilizamos sorrisos, olhares, palavras e dinheiro, que fazemos das crianças seres como nós, que impomos etapas queimadas, que lhes impingimos agendas cheias de horários estressados, roubando deles o tempo e o espaço de ser criança, a ternura e a descomplicação de um ser que tem que ter seu tempo de crescer normal, para existir completo.

Mudamos nós, quando nos conformamos com o que foi feito das nossas crianças. Pequenos adultos com gastrite e colesterol, presos em apartamentos, longe do sol, expostos à solidão do brinquedo eletrônico. Aprendendo a vencer para não ser vencido, a matar para não ser morto, a confundir a vida real com a realidade virtual.

Mudamos nós quando esquecemos a simplicidade de uma brincadeira que favorece a intimidade e o toque, que aproxima mãos, olhares e corações, trocamos o pirulito-que-bate-bate, a lagarta pintada a pintalaínha, a brincadeira que investe na descoberta do outro na parceria na troca de informação e cooperação, pela passividade de telespectadores e cinéfilos.

Brinco com crianças toda a minha vida, aprendi com elas que benéfico é sempre o equilíbrio. Que elas tenham acesso a toda modernidade, mas também sejam garantidas horas livres, companheiros, espaços de vida ao ar livre, a oportunidade de inventar e criar seus próprios brinquedos, de conviverem entre si e interclasses, para aprenderem a respeitar o conhecimento alheio, valorizar a troca de saberes e desenvolverem uma convivência democrática e participativa na sociedade que tem na sua cultura da brincadeira, a identidade da infância brasileira.

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