sexta-feira, 15 de julho de 2011

SINCRONICIDADE

de volta...

Pois é... este blog tem pouquíssimo tempo, se pensarmos em quanto representam um ano ou dois em relação ao que se cria em termos de tecnologia e tudo o mais. Lembro-me de que postei alguns trechos de canções de Chico Buarque - de quem continuo fã - lamentando sua ausência da música por tão longo período (arquivo Língua de Trapo - 06/04/11). Depois, recebi por e-mail aquela 'carta do vizinho' (arquivo Língua Afiada - 30/06/11) criticando-o pelo envolvimento com o PT, e, mais recentemente, o episódio em que algumas pessoas - ah, o anonimato na Internet...- ofendiam o compositor chamando-o 'velho bêbado' e ele aparece comentando, com um riso nervoso, em como se iludira pensando que o artista fosse sempre amado. Assisti ao vídeo e fiquei pensando na pequenez de certas pessoas que têm como diversão achincalhar os outros e tentar diminuir o valor de talentos consagrados. Verdade que a Internet facilita o abuso das agressões verbais, mas mesmo antes de tanta tecnologia, sempre houve, sim, gente que gosta de confrontar as preferências musicais e artísticas destilando um desprezo e um ódio incabíveis em qualquer debate inteligente sobre essas escolhas. Acho tudo isso uma pobreza de espírito.

Bem, fiz esse pequeno comentário para trazer a boa notícia que li nos jornais de hoje. Aí está uma delas:

15/07/2011 - 07h35
Chico Buarque faz música de sua literatura em novo álbum
FERNANDO DE BARROS E SILVA - COLUNISTA DA FOLHA DE S.PAULO

O narrador de "Querido Diário", música de abertura do CD "Chico", pode ser visto como um desajustado social, um tipo que não se encaixa direito em lugar nenhum.
"Há algo de incômodo nesse personagem, talvez ele pertença mais ao mundo da literatura que ao da música popular, a exemplo do narrador de 'Estorvo'. De certa forma, me identifico com tipos assim", diz Chico Buarque.
Ao mesmo tempo, explica, "a melodia da canção é aparentemente bastante simples, ingênua quase, o que provoca uma estranheza que julgo interessante".
Nada disso é óbvio a quem ouve essa canção pela primeira vez. E a sensação de estranhamento vai acompanhar boa parte das dez canções que compõem o disco. Dificilmente uma delas vai estourar ou tocar no rádio.
Ao aproximar desse "Querido Diário" o personagem remoto e sem nome do romance que publicou em 1991, pela Companhia das Letras, Chico evidencia um dos traços de seu novo trabalho musical: ele está impregnado por sua obra literária.
Isso aparece de forma bem mais explícita em "Barafunda", a penúltima das músicas: "É, não é/ Era Zizinho era Pelé/ Aliás, Soraia era Anabela/ Era amarela a saia/ Foi quando a verde-e-rosa saiu campeã/ Cantando Cartola ao romper da manhã".
Essa voz que recorda e confunde tudo (amores, história, futebol) pode evocar "Pelas Tabelas", samba de 1984, mas é sobretudo irmã gêmea da fala de Eulálio, o centenário narrador de "Leite Derramado" (2009), perdido entre lembranças e delírios, realidade e imaginação.
Mas este não é um Eulálio que resmunga e lamenta, e sim que exulta e celebra a vida, o que reforça e reitera a tensão (ou o contraponto) na obra madura de Chico entre o mundo sem escapes da literatura e a promessa de felicidade (ou de reconciliação) inscrita na sua música.
A mesma tensão está presente em "Sinhá", afro-samba em parceria com João Bosco, momento alto do álbum. Amarrado ao tronco, o negro suplica (em tom menor) para não ter os olhos furados pelo senhor de engenho.
Ele jura não ter visto "sinhá" nua no açude. Na última estrofe, a voz muda e um outro narrador, agora em tom maior, revela ser o "cantor atormentado/ Herdeiro sarará/ Do nome e do renome/ De um feroz senhor de engenho/ E das mandingas de um escravo/ Que no engenho enfeitiçou sinhá".
O tema do descendente mestiço da classe dominante, que em "Leite Derramado" recebe tratamento humorístico, aqui aparece num longo gemido-lamento e eco da herança escravocrata.


VELHICE E AMOR
Mas Chico, 67, também é personagem de suas canções. O romance entre o homem mais velho e a mulher mais nova é o que inspira o blues "Essa Pequena". "Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora."
Desde os primeiros versos, impossível não imaginar que a canção dramatiza, com leveza e ironia, o namoro entre o autor e a cantora Thais Gulin. Ambos dividem ainda a voz em "Se Eu Soubesse".
A mesma brincadeira com o amor tardio ou extemporâneo volta em "Tipo um Baião": "Não sei pra que/ Outra história de amor a essa hora/ Porém você/ Diz que está tipo a fim/ De se jogar de cara num romance assim".
"Chico" é um disco em que o herdeiro e continuador da tradição de Tom Jobim rende homenagem ao escritor que ele também é. E é o testemunho de um homem em estado de graça, apaixonado.
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