sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

DANIEL LOPES - Mas não façamos literatura

Mas não façamos literatura
Daniel Lopes, 19 de dezembro de 2013 - página "Homo Literatus"

Há muito desconfio da literatura. 
Difícil acreditar que foi minha maior paixão da juventude. Discussões acaloradas, sonhos galopantes, o futuro sorrindo cheio de generosidade, feito um gerente de banco… 
Agora, mal consigo ler qualquer descrição. Claro, há escritores e escritores, mas o que espero de um bom escritor é que ele esteja morto, enterrado, há sete palmos. 
Mal pego um livro e logo pressinto por trás dele um ego doente, um ser humano insuportável, como eu mesmo. 
As biografias dos grandes estão aí para confirmar. A genialidade de Shakespeare é não existir. 
É preciso ousar o fracasso, mas vivemos num tempo em que tudo é fabricado. A cultura é uma indústria como qualquer outra, e o que mais se vê são escritores dispostos a vender sua ferida, trair seu texto, em prol de uma edição em capa dura, uma resenha, um prêmio literário. O que importa é estar no mercado, vender-se, fazer sucesso, alimentar o ego monstruoso, encher-se de honrarias.

Ninguém gagueja, todos empregam a palavra certa na hora certa, são econômicos, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo, sim senhor. 
A resenha já está pronta antes mesmo do livro, o prêmio já está concedido antes mesmo do sujeito começar a escrever. 
Só um colegial ingênuo para acreditar na imparcialidade dos concursos literários.  
Mas aí? E a Arte? E o blues? E o drama da nossa mortalidade? E o silêncio ou a tagarelice dos deuses? 
Pouco importa. O importante é estar na moda, fazer sucesso, aparecer, desfilar. Ainda assim, há choro e ranger de dentes: os livros não vendem. As pessoas preferem ler a biografia do Edir Macedo, duzentos e cinquenta mil tons de cinza. 
Não é um problema nosso, não é um problema de educação, o mundo é estúpido, brega. Na França, lê-se tanta porcaria quanto aqui. Discute-se o livro eletrônico, o kindle, o escambau. 
Como fazer com que as pessoas leiam? 
Um livro não pula, não dá cambalhota, não tem botõezinhos virtuais. 
É preciso que o sujeito se sente e leia e enfrente a noite. 
O comércio propõe livros cada vez mais superficiais. Os ficcionistas da moda procuram acatar. Por enquanto ainda não deu certo.

Há muito desconfio da literatura. 
Discussões estéticas, formalismo, esteticismo. Tudo o que cerca a literatura é afetado, falso. 
Admiro escritores (desde que estejam longe de mim), mas detesto literatos. 
O escritor se preocupa com a vida, com a travessia, com a dor e o mistério de ser e de saber o ser, procura no leitor um amigo. 
O literato se preocupa com a repetição ou não de palavras, com a forma mais criativa de dizer o óbvio, com o cocktail na noite de lançamento, procura no leitor um cliente. 
Não é para menos, com o espírito reduzido a sinapses cerebrais, o carinha criativo tomou o lugar do gênio. O livro é feito de acordo com o pensamento do especialista. No entanto, é o artista e não o especialista, quem faz o novo. 
Nossa vanguarda é velha, museu de grandes novidades, códigos ocos sob a análise de sempre, eterno retorno do mesmo. 
A escrita feita acessório para a vida, como uma bela gravata, ou um cachecol; não a tábua de salvação para quem se encontra no mar, a jangada da medusa; não a fenda por onde jorra o magma entre as placas tectônicas; não o fogo que aquece dois mendigos numa noite de chuva… 
O absurdo de um escritor sem necessidade de escrever, mas que escreve porque sonha ser celebridade. 
A ficção é uma mentira que toca a verdade onde a verdade não alcança, onde nem o ficcionista sabe.

Não é no macaco que o homem se realiza, é no símbolo, no mito. Como fabricar o mito? O mito é natural como uma semente que desabrocha, como um Deus na ruína. 
Tudo pode ser construído, para que deuses, eles dizem, se um medicamento cura o espírito? Para que a sombra e o verde se já existem árvores artificiais? Para que amor se já existe o viagra? Para que o rosto se existe o botox? Para que a Arte se o leitor é uma ovelha do marketing? 
A ficção é, aqui, hoje, um constructo de fora para dentro. 
Há de chegar o dia em que se escreverá não uma resenha sobre um livro, mas um livro sobre uma resenha.

Há muito desconfio da literatura, quebra cabeça com palavras, lego para crianças científicas. 
Digo não ao texto que não é companhia, partilha, travessia, alta ajuda para a vida. 
Digo não ao que escreve e não põe os pés no riacho, não sai na chuva, não arrisca ser si mesmo.

Kierkegaard , filósofo da existência, distingue três modos de vida, o estético, o ético e o religioso. 
A Literatura é concubina do modo estético, o mais superficial. Acho que por isto certas narrativas, certas descrições, têm me entediado tanto. Boa parte do que se escreve não é espelho e escuridão, nem mesmo espelho e lâmpada. Não há diferença entre tais textos e a mulher que se preocupa com a cor dos cabelos, o desenho da sobrancelha, o botox na ruga da testa, mas que quando abre a boca só diz merda, é oca, não sabe experienciar a si mesma e está tão distante da própria alma quanto um cuspe de uma estrela. 
Por muito tempo fui apaixonado por literatura, mas, como toda paixão, passou. 
Apaixonei-me também por filosofia, passou, da mesma forma (menos Schopenhauer). 
Sem o jargão imponente, boa parte do que é chamado de filosofia não passa de encheção de linguiça, pretensão de colocar margens no mundo. 
Agora tenho lido textos religiosos, das mais variadas crenças, bula de remédio, cartas, diários e autobiografias. Interesso-me pelo modo como as pessoas decidem viver suas vidas, que caminhos decidem tomar, de que maneira atravessam os períodos negros. 
A última autobiografia que li, do Neil Young, tem o seguinte prefácio: “QUANDO EU ERA JOVEM, eu nunca sonhei com isso. Eu sonhei com cores e quedas, entre outras coisas.” 
Belo, não?

Para encerrar, cito não uma novela de um poeta, mas a carta final de um ficcionista:

Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que pode dispor para todos os fins como se fosse seu. [...] Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente, deito-me para debaixo do metro… Não se zangue comigo.[1]

Sinto aqui a voz do sangue.

[1] Mário de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa, 31/03/1916.


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