Se falta luz no fim do túnel, acenda uma lanterna
Graça Taguti - "Revista Bula"
Era mulher, homem, alguém em trânsito, metamorfose ambulante. Era nuvem passageira, melodia guardada na garganta, oxigênio asfixiado em garrafa vazia e esquecida na dispensa das saudades, arco-íris de carne e osso. É certo que perambulava, às vezes deslizando feito garça, por um túnel escuro e comprido.
Conhecia o velho ditado que sorridente afirmava, passando entre bocas anônimas “sempre há luz no fim do túnel”. Por isso, mesmo sem se dar conta, nos seus entremeios pela vida, sabia que não havia noite que durasse madrugadas adentro.
As alvoradas todos os dias se anunciavam em sua janela. Ainda que na ausência do sol. Ou na presença da chuva. Mas eram as manhãs que invariavelmente nasciam, cinzentas ou douradas, espreguiçando-se como bebezinhos um tanto atordoados.
Muitas vezes a tal mulher, ou o tal homem, ou simplesmente alguém em trânsito se questionava sobre como agir em meio à escuridão. Aludia aos séculos passados nos quais não havia luz elétrica e as pessoas se contentavam com candeeiros, candelabros, bengalas e olhe lá.
De repente, uma metamorfose ambulante pensou. E se eu engolir um par de vagalumes. Talvez pérolas negras. Ônix, aquela pedra preciosa negra, quase sisuda, mas linda e poderosa.
Sim porque, dentre tantos transeuntes entorno, simbolizados inúmeras vezes pelas figuras de linguagem que nos cercam; arremedos, por exemplo de nuvens passageiras, sabiam que, em determinados momentos, e até em encruzilhadas assustadoras, era possível enxergar coisas e situações com outros olhos. Os olhos de dentro.
Certa vez, uma melodia guardada na garganta, ao enfrentar impiedosa nevasca em território americano, notou que as pessoas dirigiam seus carros, guiadas por outros faróis. Faróis de neblina com alguns acessórios acoplados.
Um arco íris em carne e osso recordou também de uma época em que, ao exercer a função de repórter, como jornalista de uma grande editora, entrevistara gente com deficiência visual grave, inclusive um casal de cegos de nascença, casados já há muitos anos.
“E como vocês fazem para encontrar o que necessitam em casa…para fazer amor…manter as esperanças de pé, quando parece que o mundo virou do avesso ou resolveu deixar vocês para trás?!”
“Como é possível enxergar luz ao final dos túneis da existência, pelos quais invariavelmente todos passamos?” Outra metáfora foi lançada pelo irisado repórter aos gentis entrevistados.
“Damos as mãos, caminhamos pelas beiradas do concreto longo e frio. Às vezes minha mulher segue à minha frente, desvendando oportunidades no trajeto. Em outras ocasiões, eu assumo a dianteira durante este percurso” — explicou o marido.
Ambos cegos de nascença, mas sedentos por cultura, cultivaram desde cedo o hábito de escutar audiolivros. Aprenderam muito. Ressaltaram o fato, quase ao final da entrevista, citando grandes criadores em áreas diversas das artes, ciência, literatura, portadores de enormes desagravos físicos, terem enfrentado com audácia e tenacidade transtornos do destino.
Como Beethoven, o magistral compositor, cujas algumas de suas mais portentosas obras surgiram durante o processo de surdez irrevogável. Ou o escritor argentino, Borges, portador de cegueira hereditária, que começou a ficar cego na infância, devido a uma degeneração genética da retina, herdada do pai. Os espelhos, aliás, refletindo a procura da identidade, eram um tema recorrente em sua obra.
Outra moça, como se tivesse deixado por longo tempo sua capacidade de respirar, o oxigênio asfixiado em uma garrafa vazia e órfã, nos contou que sofrera, aos 37 anos, sério acidente de carro, exatamente quando atravessava após mais um dia de trabalho, um túnel pouco iluminado. Linda, feliz, generosa, sempre amada, a moça, professora de educação física, ficou paraplégica.
Sim, trágico. O mais fácil, lamber feridas, se auto vitimizar, passar a cozinhar em fogo lento rancores no espírito revoltado. Mas não. Ela nascera para encarar a vida sem dó nem piedade. Ainda que frequentemente surgissem em seu caminho percalços como esse, irrevogavelmente danosos.
A moça começou a ajudar cadeirantes, preparando-os para torneios de basquete paraolímpico. Em meio aos treinos, conheceu alguém, técnico de outra equipe. “Quando a luz dos olhos meus encontra os olhos teus” a música soou baixinho, quase sem querer se anunciar, no peito de ambos.
A paixão esticou os braços para o alto, à espera do amor, que aos poucos aterrissava entre os dois. Seu namorado não possuía qualquer problema físico. Mas também não tinha encontrado uma companheira bacana de verdade, até se deparar com a alegria, energia e graça desta brava criatura.
Atravessar túneis longos e escuros, reais ou imaginários, acreditando haver luz ao término do percurso é no mínimo algo ingênuo. A não ser quando se trata de vencer enormes desafios íntimos. Pois a morte, em aparente desgoverno, dissimulada como o véu preto e soturno que a recobre, pode cruzar conosco. Assim é preciso estar atento e forte. Não acreditar em milagres a torto e a direito já é um passo e tanto. Porque muitas vezes eles precisam das nossas mãos do nosso cérebro e do nosso coração para se manifestarem.
Então, que tal andar por aí, pelo menos, sempre com uma lanterna?
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